IV • A CHEGADA

 

O desacreditado e açoitado ferreiro já quase perdera as esperanças de encontrar-se fisicamente com o Mestre, já que ele só existia em seus nebulosos sonhos cheios de mágoa. Jerusalém continuava sendo um lugar dominado pelo mal. O ferreiro acabava de acordar de mais uma noite mal dormida quando sentiu do lado de fora das grossas janelas de sua casa um movimento de vai-e-vem diferente do normal. De imediato, recordou a mesma sensação de quando César estava na cidade, retornando de alguma batalha ou cruzando a pequena Jerusalém por mero engano.

Os murmúrios terminaram na voz de um garoto que se aproximou correndo e quase tropeçando em sua própria euforia. Aos gritos, tentava fazer-se ouvir por todos, mas, ao mesmo tempo, ninguém conseguia escutá-lo. O ferreiro vai à rua e indaga o menino. Sua mulher o observa com atenção. – O que está acontecendo? –  O menino, num misto de espanto e alegria, responde, inquieto:

– Dizem que está chegando um homem milagreiro, milagroso. Dizem que está chegando um homem que virá nos salvar de César. Dizem que chegará a qualquer instante!

O ferreiro explode em alegria. Cada ferradura, cada prego havia valido para ajudar a dor da espera. Pela primeira vez na vida ele se sentia pleno. Sentia-se jovem e com forças para carregar um javali de duzentos quilos se preciso fosse. As preces e malfadada rotina que guiaram seus passos por longos anos desde o conhecimento de que o Mestre viria terminavam ali. Um novo tempo estava começando na voz daquele garoto, e suas orações finalmente haviam merecido um agradecimento de sua parte mais sincera – o coração.

No seu íntimo, a resposta estava dada. Ele estava a caminho. O seu dia chegou. E o ferreiro não deixou de transparecer um lado quase infantil em seu rosto quando abraçou a mulher como há muito não fazia. As palavras esbarravam nos lábios, que não fechavam o sorriso aberto e escancarado que toda Jerusalém e parte de seus trevosos habitantes teriam que ver e engolir.

– Ele chegou. Ele chegou. Eu lhe disse que Ele chegaria um dia. Vamos para a rua. Vamos procurá-lo e recebê-lo.

 Homens disfarçados com capuzes misturavam-se na multidão que ia às ruas sem modéstia. Atrás desses capuzes estão cérebros desconfiados de que haveria uma mudança. Algo muito diferente de outras vezes, quando vários profetas haviam surgido do nada, e para o nada foram.

Os informantes do poder estavam ali para isso. Desconfiar, constatar e fazer um relato. Informar aos romanos de que uma séria ameaça à ordem poderia estar se aproximando. Por enquanto isso ainda não passava do começo de uma histeria coletiva, o suficiente para desagradar aos discípulos de César. O grande momento estava chegando. A multidão caminhava e se juntava a tantos outros pés que por ali nunca passaram. Ao longe, via-se que a multidão não obedecia a nenhuma ordem para se aproximar de um pequeno círculo que crescia a cada instante.

Por algum motivo, a turba humana se aglomerava, os pés lado a lado com centenas de outros pés. Aos sobressaltos, transformavam as já pequenas ruelas da cidade em túneis, formando ondas que tentavam ajustar-se ao reduzido espaço. Todos pararam e, num primeiro instante, viu-se que a alegria das crianças foi contagiada pela visão de um homem e de um burrico que tentavam caminhar – e não conseguiam.

Descalço, o homem aliviou as costas do animal de seu peso e se jogou ao pó do chão com desenvoltura e vigor. Suas vestes totalmente brancas distinguiam-se da cor local, que ia do cinza-escuro a um marrom forte. Os pés que tocavam a terra não se sujavam. A túnica branca contrastava com seus olhos e cabelos negros. Sua barba de tamanho regular não evidenciava o nariz aquilino, que se sobressaía quando virava o rosto, como se não quisesse decepcionar a multidão que aguardava por um simples aceno qualquer.

Aquele homem de pele muito branca contrastava com os demais. Parecia nunca ter se deixado dourar pelas lâminas solares que infestavam a região, tornando-a sempre quente e árida. Seus traços confundiam-se com os do povo, mas não o suficiente para evitar interrogações sobre a origem do novo profeta. A alegria parecia ser seu cartão de visita. É assim que saudou a todos. As brincadeiras cativaram à distância e encontraram o peito de Jonas, que, ansioso para se aproximar do Mestre, furou o bloqueio humano com todo seu vigor até o momento em que não era mais preciso fazer nenhum esforço.

O Filho de Deus percebeu a presença de Jonas e pediu a ele que se aproximasse, ordenando que abrissem caminho para o ferreiro e sua esposa. As centenas de olhos curiosos convergiram para um ponto só. O sorriso de Jonas iluminava-se à distância e lentamente a presença mágica do Mestre era sentida com toda intensidade. O olhar de Jesus abraçou Jonas e ele se ajoelhou, como se jogasse seus quase cem quilos de músculos e ossos todos de uma vez ao solo. As lágrimas correram rapidamente pela face, molhando agora o que a partir daquele instante se transformaria na Terra Prometida.

Jonas sentia-se leve diante do olhar mais caridoso e bom que jamais tinha visto no rosto de outro homem. Jesus pegou em suas mãos e, com a mão direita estendida, pediu ao ferreiro que se levantasse. As palavras chegaram ao ouvido de Jonas como música ao luar.

 – Abençoado este filho querido que tanto me esperou. Abençoado este filho querido de mãos tão fortes, trabalhadeiras. Abençoado este filho querido que, mesmo sem me conhecer, nunca me abandonou, que acreditou nas palavras de meu Pai. Abençoado este filho que agora me encontra, que me vê e acredita em mim. Abençoado seja, filho. Não ajoelhe para ninguém nesta terra, porque ninguém nesta terra merece alguém que se ajoelhe.

O povo acanhado de Jerusalém já esboçava sinais de inveja do antes massacrado achincalhado ferreiro. Não entendiam por que tanta consideração para com aquele pobre-diabo. Mas os motivos para a inveja continuavam. O Mestre olhou para a mulher do ferreiro, aproximou-se, tocou em sua mão esquerda e, com a outra mão, afagou-lhe o ombro, o que a fez sentir a pressão de uma pena, levando-a a se ajoelhar. Sem rodeios, ele a levantou e esclareceu com palavras simples o que aquela multidão de descrentes jamais iria entender e aceitar.

– Sua fé trouxe este homem à fé.  Sua fé clareou os caminhos deste homem até mim. Não precisa se ajoelhar para ninguém. Não precisa me reverenciar, porque eu te conheço. Você é do Reino de meu Pai, então se aproxime de mim como uma irmã, não como uma alma da Terra. É do reino de meu Pai, você é do meu reino. Junte-se a mim e ao seu coração. Junte-se aos muitos que virão em prol de minha causa. Junte-se a mim e a sua luz renovadora ganhará luz. E a sua mão amiga acalentará os enfermos que virão. E que serão muitos. Com sua força, com sua luz e sua alegria encontraremos um caminho para todos nós. E este homem a seu lado que lhe engrandece tanto partirá com você para as buscas necessárias, para as viagens inevitáveis em favor do bem e dos homens. Não titubeie no ensinamento da luz a este homem. Ele saberá reconhecer os ensinamentos de meu Pai. Vão agora. Eu irei depois.

O aplauso fácil da multidão não mudou a expressão no rosto de Jesus. Nem a festa popular. O ferreiro e sua mulher caminhavam em direção a sua casa e eram seguidos por Jesus poucos metros atrás. Crianças queriam tocá-lo a qualquer custo. O ferreiro parecia pela primeira vez encontrar um lugar para o seu sorriso de criança ao lado do sorriso de tantos meninos e meninas. A felicidade contagiava todo o amontoado de gente que tomou conta das ruas da cidade.

Na contramão, homens disfarçados subiam em direção à parte alta de Jerusalém, e o palácio romano saberia em breve quem era o mais novo e ilustre visitante. Atrás das grandes colunas que encobriam os desvarios do poder, encontramos um homem baixo, calvo, dono de um grande nariz. Deve ter no máximo um metro e sessenta de altura. Magro, sua pele é rosada e fica mais avermelhada quando tem explosões de raiva. Todo o sangue daquele corpo baixo, mas imenso, parecia se concentrar em sua face, e por pouco não transbordava ao ser interrompido. Estava sentado numa espécie de trono, com duas mulheres seminuas. Uma de cada lado.

Seus rostos tinham uma expressão pervertida, que estampavam exatamente o que faziam durante a maior parte de seu tempo. A morena tem sobrancelhas negras e pele alva, deixando claro que parte de sua nádega volumosa e perfeita não estava à vista porque não deveria ser mostrada. A loira também carrega muitos adereços na cabeça e seu corpo é deliciosamente bem-formado. Os músculos das coxas e o volume de seus seios demonstram capacidade quase absoluta de satisfazer os mais exigentes gostos. E principalmente o daquele homem franzino que acabara de chegar à cidade para um breve descanso, antes de voltar a ter a seu lado apenas cavalos e homens armados até os dentes.

O homem é César, o imperador de Roma. O olhar de César foi traído quando, ao bolinar o seio de sua serva com um cacho de uvas tenras, viu o que seriam soldados invadindo o salão imperial, acompanhados de um sujeito com vestes marrons e ares de delator. O ar de enfado ficou nítido quando foi obrigado a parar de manusear os corpos seminus que estavam à sua disposição para se obrigar a dizer ordens de comando. A irritação era constante no Imperador, e naquele instante a reação não podia ser muito diferente.

– Quem se atreve a importunar César?

Um dos guardas respondeu. – Senhor, este mensageiro trouxe novidades da aldeia. Ele diz que um estranho a quem chamam de Jesus de Nazaré acaba de chegar à cidade montado num burrico, vestido com uma túnica branca e dizendo ser o Rei, o Rei dos Judeus.

César observou o teto de seu palácio ao voltar sua cabeça para trás e pôr as bagas da ponta do cacho de uvas em sua boca nervosa. – Rei dos Judeus?  Os judeus só têm um rei – eu!  Então, que besteira é essa?  Que bobagem é essa de Rei dos judeus? – O mensageiro dava um show de instabilidade emocional. Suas pernas começavam a tremer e ele deixou que o medo lhe tirasse as forças das cordas vocais, o que transformou sua voz num quase balbuciar. 

– Senhor, é verdade, é verdade, ele é um milagreiro. Não carrega armas, apenas carrega... digo... as roupas... que estão sempre limpas, parecem carregar... bondade.

– Bondade?  Como carregar bondade?  Guardas, tirem este homem daqui. Ele está me deixando nervoso!!! César gritava furiosamente. O homem foi tirado aos empurrões do palácio. O imperador ficou pensativo e, no instante seguinte, pediu para que a serva loira se aproximasse e se abaixasse. Ela ajoelhou-se sem nenhum pudor. Por um momento, César sucumbiu à carícia avassaladora da ninfa e, após o primeiro espasmo, mandou averiguar quem era Jesus.

 

 
Make a Free Website with Yola.